O livro O Templo reúne os escritores W. H. Auden, Stephen Spender e Christpher Isherwood em férias numa Alemanha à beira do horror (horror que nem Kurtz, de Conrad, poderia rabiscar em letras). O ovo da serpente já se tinha partido, e seu rastro estava desenhado, avisando que, sorrateira, a cobra se aninhava, imperceptível, na Berlim onde os amigos se divertiam. Os três percebem o cheiro mortal do horror se fazendo, mas não creem que a humaninade possa ir no incomparável Inferno de Dante com tamanha obviedade. Muitas vezes, quando o mal é tão bem estruturado fica difícil perceber a sua face. E a estrutura do fascismo alemão era de uma evidência confusa, porque brutalmente inacreditável.
Spender, Auden e Isherwood, n’O Templo, já estão nessa Berlim empestada. A serpente, antes do bote, usa de sortilégios. Os três amigos ingleses percebem a proximidade do desastre nazista, mas em suas juventudes – seus templos – não conseguem crer que, mesmo diante de milhares de evidências, a estupidez do fascismo já se instaura em seu nível absoluto. A lucidez não é terreno onde a juventude funde bases sólidas, e os três amigos são demasiado jovens.
Quase ao fim do livro, eles percebem que não há mais espaço para a inocência à qual suas vidas estavam entregues. O “templo” seria destruído pelas botas da SS e seus semelhantes – tudo isso (a vontade de horror) já estava internalizado há muito tempo em todos os elementos da sociedade alemã. Os que viam, negavam a proximidade da barbárie e se entregavam, cúmplíces. Os que não viam se entregariam com o mesmo bom grado, futuramente, por conveniência e por fé cega.
Não havia inocentes. Na Alemanha nazista não houve inocentes. Em nenhum regime totalitarista não há inocentes (muitas vezes, nem as vítimas estão inocentes. Josef K. Pode ser o único exemplo de inocência. Mas isso é Kafka, e Kafka é fundamento a ser tratado depois ).
O Templo foi escrito por Stephen Spender, em 1929, e nele se destaca a singularidade do momento histórico passado na República de Weimar com a instalação do nazismo. Os discursos de um grande comunicador, Adolf Hitler, ofertavam todas as certezas que a Alemanha necessitava – pela elasticidade que a banalidade do mal possui – de se tornar livre, forte e temida. Sim, o povo alemão, naquele momento, necessitava da expressão máxima do ódio.
O carisma de Hitler não é fenômeno com características místicas. Hitler não era nenhum enviado do demônio ou outras bobagens. Hitler era um homem mau, extremamente mau, incomparavelmente mau, mas apenas um homem mau – como são maus muitos homens dos dias de hoje, com os mesmos discursos e posturas. É repetitivo dizer que o sucesso do carismático se estabelece pela necessidade que uma maioria, num determinado instante, possui de preencher alguma vacuidade. E – naquele instante – a Alemanha, e os povos que seriam seus futuros adeptos, necesitavam preencher a nulidade na qual estavam todos mergulhados.
O mal sempre se instala para “salvar” alguma coisa. Foi pelo discurso da redenção de um povo que Hitler chegou à destruição plena. Nenhum Hitler ou Stalin se solidifica no nada. É necessário todo um empenho de vontade para que ele se instale, empenho pessoal e social – empenho estrutural. Esse empenho pode ser identificado pela suástica em modelos diversos (sempre com caras cinicamente variadas) às vezes imperceptíveis, travestidos de liberdade. O nazismo não se repetirá, mas seus filhotes estão a sair de dentro da casca do ovo.
Essa suástica – ou seja lá qual seu novo símbolo – pode estar fincada na entrada do Reichstag, no Vaticano, na Praça Vermelha, na Torre Eiffel, no Templo do Céu, na entrada da Casa Branca ou no Palácio do Planalto.
