Quando o doce é amargo; Por Walter Pinto Filho

COMPARTILHE A NOTÍCIA


Há gestos pequenos
demais para virarem escândalo — e consequências grandes demais para serem ignoradas. Pascal e Montaigne ensinaram que a verdadeira grandeza está em reconhecer a pequenez de certas vaidades.

Durante uma visita ao Café Havana, em Joinville, um potencial consumidor percebeu uma pequena diferença entre o valor exibido na vitrine e o cobrado no caixa: o produto era um doce de leite. Uma discrepância irrisória, facilmente resolvível com diálogo direto. Mas, em vez de tratar o assunto com discrição, o cliente — no caso, o conhecido padre Fábio de Melo — optou por transformar o episódio em conteúdo para suas redes sociais.

O que era banal ganhou dimensões midiáticas. Jornais de grande circulação repercutiram o caso com destaque. Não houve agressão física, nem afronta moral — apenas, segundo a imprensa, uma queixa por um pequeno erro administrativo. Mesmo assim, o episódio foi inflado por julgamentos e narrativas. E no centro desse movimento estava um padre que, em vez de pregar humildade, misericórdia e perdão, escolheu usar sua visibilidade para expor publicamente o gerente da loja — e transformá-lo em alvo.

O impacto da notícia foi devastador. A cafeteria, temendo danos à imagem diante da repercussão, agiu com pressa e severidade: demitiu o reclamado. Um julgamento sumário, selado pela força de uma postagem. Pior: a empresa ainda tornou pública a decisão e pediu desculpas ao reclamante — uma conduta que contraria o espírito da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, que preza pela conciliação, razoabilidade e equilíbrio nas relações de consumo.

Dias depois, o autor da reclamação se queixou dos ataques sofridos nas redes: “É tão desproporcional a medida que se estabelece entre o que ‘realmente aconteceu e o ataque’ que nós chegamos à conclusão de que as pessoas não querem a verdade”, declarou. Mas quem lançou a pedra e agiu com desproporção? O sacerdote que agora reclama — e que não pensou nas consequências ao empurrar um funcionário ao abismo. Tudo por um incômodo irrelevante, que jamais justificaria um linchamento.

Houve quem reagisse, sim. Muitos denunciaram a injustiça, apontaram o excesso, defenderam o empregado. E é isso que se espera de qualquer pessoa decente: defender os humildes quando são esmagados pela força dos poderosos. A verdadeira fé não se cala nem se curva diante do prestígio — ela se levanta. O próprio Cristo advertiu: “Ai dos que impõem fardos aos outros e não movem um dedo para aliviá-los.”

O demitido é só mais um na longa fila dos descartáveis, punidos não por seus atos, mas pelo prestígio de quem os acusa. Como alertou Kierkegaard: “A fé que não produz humildade é uma mentira.” Esse gesto, vindo de um devoto, não é apenas lamentável — é incompatível com a veste sacerdotal que usa. Um homem que fala em Deus e espiritualidade não pode usar sua influência para promover a exposição destrutiva de um trabalhador. Isso não é Evangelho — é vaidade.

Um bispo de Santa Catarina, ao considerar a conduta do religioso “incompatível com as doutrinas da Igreja Católica”, apresentou uma denúncia formal à Santa Sé. Embora a queixa não traga consequências disciplinares graves, relatos indicam que o caso deixa uma marca permanente no registro e na reputação do presbítero dentro da instituição. Ao funcionário sacrificado, restou apenas o caminho da Justiça — e o peso de um castigo que jamais deveria ter existido.

Uma batina não deve esconder soberba. E a fé, quando usada para esmagar os fracos, deixa de ser virtude — torna-se instrumento de poder. O erro de cobrança foi humano. O grito do padre, um erro de alma.

Walter Pinto Filho é Promotor de Justiça em Fortaleza, autor dos livros CINEMA – A Lâmina que Corta e O Caso Cesare Battisti – A Confissão do Terrorista. www.filmesparasempre.com.br

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

Disputa entre Ceará e Pernambuco derruba comando da Sudene e escancara guerra por trilhos e poder no Nordeste

Guararapes, Cocó e De Lourdes têm a maior renda média de Fortaleza. Genibaú, a menor

Moraes manda Bolsonaro para prisão domiciliar após vídeo em ato com bandeiras dos EUA

Paul Krugman: Delírios de grandeza (de Trump) vão por água abaixo

Pesquisa AtlasIntel: Crise com Trump impulsiona Lula e desidrata Bolsonaro

Torcida brasileira pode ficar fora da Copa de 2026 nos EUA

Exclusivo: placas de aço produzidas no Pecém fora da lista de exceções de Trump

Reagan vs. Trump: Quando a direita acreditava no mercado, não na ameaça

Levitsky: Trump usa tarifas como arma pessoal e ameaça global à democracia

GLP-1 no Brasil: promessa de milagre, preço de privilégio

O Pix da histeria à omissão: por que a direita gritou contra o governo e calou diante dos EUA

Ciro Gomes caminha para filiação ao PSDB após almoço com cúpula tucana, em Brasília

MAIS LIDAS DO DIA

Aneel aponta falhas e trava renovação antecipada da Enel no Ceará

Pela 1ª vez em 20 anos, MAS fica fora da disputa presidencial na Bolívia

TST autoriza penhora de pensão para quitar dívida trabalhista

130 municípios do Ceará são selecionados para novas moradias do Minha Casa, Minha Vida

Com alta de 178%, Ceará amplia exportações para Alemanha em julho de 2025

MPCE: Câmara de Ubajara deve chamar concursados em 20 dias

Brasil responde aos EUA sobre investigação comercial que envolve o Pix

União transfere fiscalização de trechos das BR-116/BR-222 para governo do Ceará

Importadores pressionam Washington por isenção da água de coco do Brasil