Raul Seixas, a IA Generativa e a busca por uma consciência cósmica; Por Paulo Mota

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Passei o último fim de semana em uma espécie de transe — em parte provocado pelos calafrios de um resfriado colhido no frio de São Paulo, em parte pela maratona intensa da série documental da Globoplay sobre Raul Seixas, que no sábado completaria 80 anos. A febre, os delírios e as canções de Raulzito formaram uma tempestade mental, que me levou a revisitar, num dia de chuva, não só a genialidade de suas letras, mas também o garoto do sertão de Tamboril que, em meados dos anos 70, foi fisgado pela poesia do pai do rock brasileiro.

Lembro como se fosse hoje: a carroceria de uma caminhonete rumo à fazenda Sítio do Meio, as férias escolares, o rio que transbordava, a parada inesperada numa casa simples à beira da estrada. E, na varanda, um casal de jovens dançava e cantava alegremente:

“Ô, ô, seu moço do disco voador,
Me leve com você pra onde você for…”

Aquela imagem ficou cravada na minha memória como um símbolo de liberdade e sonho, das tribos urbanas do eixo Rio-SP aos ouvintes do programa Raul Rock Seixas, apresentado na Rádio Educadora de Crateús. À noite, deitado no alpendre da casa do meu avô, enquanto ouvia suas histórias de Trancoso, procurei no céu estrelado algum sinal daquele disco voador de Raul, metáfora de sua infinita busca pela consciência cósmica.

Décadas depois, essa mesma música ressoou fundo enquanto eu assistia à série, mas, curiosamente, também enquanto ainda digeria os conteúdos do 9º Aberje Trends, evento que reuniu, no dia 26, em São Paulo, líderes de grandes empresas para discutir os desafios da comunicação num mundo em tensão. Entre painéis sobre desinformação, inteligência artificial, crise climática e transformação digital, uma ideia me atravessou: Raul Seixas já cantava, nos anos 70, os dilemas do nosso tempo — com a alma de um metamorfo digital, muito antes dos algoritmos.

Camila Achutti, CEO da Mastertech, abriu sua palestra com uma provocação direta: a inteligência artificial é a máscara do nosso tempo. Raul, décadas antes, já nos dizia que preferia ser essa metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ou seja, enquanto hoje buscamos nos adaptar a tecnologias que se atualizam a cada segundo, Raul defendia a liberdade do pensamento mutante, em constante reinvenção. A IA generativa, com seus modelos que aprendem com grandes volumes de dados e produzem respostas contextualizadas, nada mais é do que um reflexo técnico desse espírito inquieto.

Mas há um alerta que une o roqueiro e os especialistas do Aberje Trends: não basta repetir padrões — nem na vida, nem nos sistemas. Camila nos alertou: se você tem uma habilidade acima da média, não a terceirize para a IA. Raul já dizia isso de outro jeito, na sua quixotesca luta contra o “sis” de sistema: “Então vá, faz o que tu queres, pois é tudo da lei.” A autenticidade — seja humana ou algorítmica — não pode ser programada sem consciência crítica.

Hamilton dos Santos, diretor da Aberje, apresentou o conceito de “Cracolândia digital” para descrever o ambiente de desinformação em que vivemos, paradoxalmente, em meio a uma explosão de informações. Raul, mais uma vez, estava lá antes: fundou, com Paulo Coelho, uma tal de Sociedade Alternativa, que propunha um mundo onde cada um pudesse viver segundo sua própria vontade, desde que respeitasse o outro. Em tempos de bolhas digitais, verdades fragmentadas e subculturas que nem dialogam entre si (como destacou Sheylli Caleffi, analisando a série Adolescência, da Netflix), a mensagem de Raul se torna ainda mais atual.

E, por fim, o amor. A série e o evento me deixaram com essa síntese: por trás da angústia tecnológica e da turbulência global, o que buscamos é conexão verdadeira. Raul, em sua vida cheia de altos e baixos, excessos e genialidade, parecia estar sempre em busca de uma consciência cósmica, uma forma de transcender a pequenez do cotidiano e tocar o infinito com arte, liberdade e poesia.

Isso me fez lembrar do que o físico Marcelo Gleiser chama de “O Ponto Cego” do conhecimento — essa fresta invisível por onde escapa o que a ciência, sozinha, não alcança: a experiência humana, o mistério da vida sentida. Gleiser propõe que a razão não basta, que é preciso dar lugar ao afeto, à memória, ao amor que nos atravessa e dá sentido ao mundo. Uma espécie de prova lírica, quase científica, de que sem amor não há verdade inteira — e de que, no fundo, sem amor, nós nada seríamos.

Se José Miguel Wisnik nos lembrou, em sua aula-show, que a música é símbolo e linguagem de um povo, Raul Seixas é a prova viva de que a canção pode ser também profecia de um Brasil potente e sedutor — tudo aquilo de bom que só a gente sabe fazer.

Num tempo em que algoritmos aprendem a nos imitar, talvez ainda tenhamos muito o que aprender com quem ousou cantar:

“É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa 10% de sua cabeça animal”

Viva Raul! Toca Raul!

Paulo Mota é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, especialista em Comunicação Estratégica, Projetos Culturais e Gestão Pública. Ex-Folha de Sã o Paulo, El País e Banco do Nordeste. Atualmente é gerente de Comunicação e Marketing da Companhia de Gás do Ceará.

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