Equipe Focus
focus@focuspoder.com.br
Após órgão técnico do próprio Ministério da Saúde atestar a ineficácia do chamado “kit COVID”, a pasta ainda não definiu um protocolo de atendimento da doença para pacientes hospitalizados na rede pública. Com quase dois anos de pandemia, o governo brasileiro também não tem diretrizes para tratar casos clínicos. O secretário de Ciência e Tecnologia, Hélio Angotti Neto, engavetou duas de oito diretrizes contra a COVID, aprovadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no SUS, em junho e em dezembro. Ambas reprovam a hidroxicloroquina e outros remédios que não funcionam contra o novo coronavírus – e foram difundidos pelo presidente Jair Bolsonaro.
Aliado ideológico do presidente, Angotti Neto promoveu quatro audiências públicas em 2021. Metade era relacionada aos tratamentos hospitalar e ambulatorial para a COVID, que ainda esperam desfecho. Inundadas com manifestações de negacionistas, as audiências e consultas públicas feitas pelo governo sobre o tema serviram para adiar a decisão e para não contrariar Bolsonaro.
A Conitec reprovou o uso hospitalar das drogas em junho. Caberia a Angotti Neto mandar as diretrizes para publicação em Diário Oficial, para que as normas técnicas entrassem em vigor. Sem a oficialização do protocolo, a rede pública fica livre para adotar condutas próprias em diferentes regiões do País.
Ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o sanitarista Claudio Maierovitch destaca que pacientes podem estar recebendo tratamentos sabidamente inadequados. “Quando não existe um protocolo nacional há uma liberdade para que cada um faça o próprio protocolo. Pode ser que alguns Estados e municípios adotem protocolos muito diferentes, que não respeitam bases científicas e o conhecimento construído durante essa pandemia. E isso pode continuar acontecendo na medida em que não há nenhum documento oficial que diga o que não é para fazer.”
Os documentos técnicos sobre remédios aprovados na Conitec foram produzidos por um grupo de pesquisadores, a pedido do próprio ministro Marcelo Queiroga. No caso dos pacientes internados, a recomendação era a de “não utilizar cloroquina ou hidroxicloroquina”. Em outra pesquisa, sobre pacientes tratados clinicamente, a Conitec concluiu, em dezembro, que remédios como cloroquina e azitromicina também não funcionam. A comissão precisou votar o tema duas vezes. Houve ainda uma consulta pública – instrumento que é praxe na comissão. Apesar de o relatório técnico ter sido aprovado em 8 de dezembro, Queiroga decidiu convocar uma audiência pública, 20 dias depois – o que não é comum -, para rediscussão.
A pasta chamou defensores do chamado tratamento precoce para debater o tema com representantes de entidades médicas. Ao insistir com a cloroquina, uma das convidadas da audiência pública, a professora de Educação Física Marcia Rohr da Cruz falou em “interesses geopolíticos” e afirmou que “estamos em guerra”. “Não tem tanque, não tem míssil”, disse. “Mas tem pânico, tem medo. Esta guerra foi declarada há bastante tempo.”
Segundo a educadora, “a crise é pensada” e “o único intuito” da imunização contra a COVID é “a modificação genética”. “Acorda, povo de Deus. Eles vão eliminar parte dos nossos irmãos. Eles precisam retirar a nossa alma para alcançar o objetivo macabro de poder e dominação. Que Deus nos proteja desses hereges fariseus.” Quase uma semana após a audiência pública sobre tratamento ambulatorial, Angotti ainda não liberou o protocolo aprovado pela Conitec para publicação em Diário Oficial. A etapa é necessária para que o documento tenha validade e o SUS possa definir estratégias de tratamento a partir dele.
Engavetamento
O médico Alexandre Naime Barbosa, chefe da Infectologia da Unesp e consultor para COVID-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Médica Brasileira (AMB), participou do grupo que elaborou as diretrizes para o tratamento ambulatorial contra a doença. Ao Estadão, Barbosa afirmou que o engavetamento do protocolo impede que uma informação avançada chegue aos médicos da linha de frente.
Ainda segundo ele, o ministério represa um documento fruto de “meses trabalho árduo” que foi amplamente discutido em esferas técnicas.” (No documento) tem a discussão sobre hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, nitazoxanida e colchicina, está tudo bem claro e com todas as evidências científicas de que essas medicações não funcionam. A gente ainda vê colegas com dúvidas,”.
Barbosa pontua ainda que as diretrizes sobre o tratamento hospitalar também apontam temas importantes como qual dose e tipo de corticoide, de anticoagulante e de antibiótico usar em pacientes internados. De acordo com o médico, todos esses tópicos ainda geram dúvidas em médicos. “O Ministério prepara esses protocolos para auxiliar quem está na linha de frente. Isso é um desserviço enorme.”
Atrasos
O expediente de usar ferramentas legais para adiar a decisão sobre assuntos que interessam ao bolsonarismo também surgiu no caso de vacinação de crianças e adolescentes contra a COVID. Apesar de ter segurança e eficácia verificadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a imunização desse público foi contestada por Marcelo Queiroga. O ministro decidiu convocar uma consulta e uma audiência pública.
Nos casos em que receber a opinião da sociedade para embasar decisões é comum, como na análise de medicamentos para tratar a COVID pela Conitec, a consulta não se mostrou útil. Apoiadores de Bolsonaro e leigos invadiram os formulários de contribuições
Houve mais de 20 mil comentários. Todos precisaram ser analisados pela equipe do professor Carlos Carvalho, da USP. A maioria das sugestões carregava impressões pessoais, motivações políticas e religiosas. Havia citações a Deus, pedidos pelo fim da Conitec e até menções a uma “intervenção globalista”. “A maioria era sem grande valor acadêmico. Eram pessoas isoladas dizendo que tomou isso e aquilo. Era perceptível que alguém havia pedido esse tipo de contribuição.”
Desde o dia 31 de dezembro a reportagem pede ao Ministério da Saúde explicações sobre a demora para publicação dos protocolos. Até o momento, não houve respostas.