Terapia pela palavra. Por Angela Barros Leal

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Conversa. Foto: Freepik

O entregador alourado, de olhos azuis, baixinho e forte, tira os sapatos antes de entrar na sala. A casa não é minha. Estou ali para receber uma poltrona comprada por vizinhos que trabalham, que não se encontram em casa naquele momento, e que me pediram para dar uma ajuda. Coisas de vizinho.

Ele empurra para dentro da sala a caixa grande, de papelão, retira a poltrona com certo esforço e a coloca no chão. Puxa o fôlego, enxuga a testa com as costas da mão, com a outra massageia o lado esquerdo das costas, e me pede um copo d’água.

Encho e trago o copo, um tanto desconfortável por estar mexendo em uma geladeira que não é minha, em uma cozinha que também não é, já pensando na justificativa bíblica a apresentar aos donos: Dai de beber a quem tem sede.

Parece que a ingestão veloz do copo d’água desbloqueou algum impulso retido na garganta do homem. Antes mesmo de terminar o último gole, ele me pergunta se eu sei por que ele me pediu a dita água. Uma dessas perguntas retóricas, de resposta aparentemente óbvia, que respondi negativamente, com a testa franzida deixando transparecer minha curiosidade.

Tenho um cálculo renal se deslocando, ele informa. Imagino um pedregulho minúsculo, de arestas cristalizadas, um micro porco-espinho traçando um risco pontudo de dor, tentando transitar pelo interior dos fios finíssimos que mantém unidos rins, ureteres, bexiga, sistema urinário completo, enquanto agride o corpo como um todo.

Entristeço o rosto em solidariedade. Dizem que é pior do que a dor do parto, ele continua, embalado por minha cara de sofrimento solidário. Um cálculo, sim, cuja origem ele suspeita qual tenha sido: excesso de refrigerantes e sucos artificiais, as tubaínas consumidas durante a infância e adolescência de menino pobre do interior.

O pai faleceu quando ele tinha 11 anos, o mais velho de sete filhos. Esperto, o menino mudou-se para uma padaria perto de casa, garantindo alimento para a mãe e os irmãos, enquanto prestava serviços para toda demanda. Assegurava assim sua refeição principal: o pão com manteiga passado no açúcar, os grãos alvinhos, industrialmente processados, grudando na camada amarela da manteiga, estalando nos dentes maltratados. Isso acompanhado por um refrigerante, ou Ki-Suco, aquele de uva, a senhora sabe qual é.

Claro que sei. Uma bebida lúdica, com opções quimicamente multicoloridas, que demandam envolvimento do consumidor, quase sempre uma criança de olhos maravilhados ao testemunhar o milagre da água a se transformar em vinho, morango, cereja, groselha, e outras frutas jamais brotadas em nossos agrestes sertões.

Ao mesmo tempo em que eu tomava aqueles sucos, e comia aquela comida, ele prossegue, a senhora sabe: eu estava contribuindo para criar esses cálculos que me maltratam agora. Foi uma dificuldade trazer essa poltrona, mas não posso deixar de trabalhar.

Nos mantemos de pé na sala da vizinha. Ao que parece, o simples desabafo parece estar beneficiando a saúde dele, que muda de assunto para acontecimentos recentes de sua cidade natal, para a situação melhor em que hoje se encontra sua família, e para o amor que tem pelos netos, mostrando a foto de um deles na tela do celular.

É um garoto sorridente, lourinho, olhos azuis, as mesmas características do orgulhoso avô, dotados ambos de um tipo físico não imediatamente associado ao biotipo cearense. Talvez isso se deva a incursões holandesas, ou ao trânsito de portugueses atravessando a região Centro-Sul do Ceará por volta do século XVII, penso sem comentar. Não quero que se ofenda com suspeitas sobre seus antepassados.

Ofereço mais um copo d’água ao homem, embora já desconfiando que a sede dele é por atenção, por ser ouvido, por ter comprovada sua existência e ter aceita como real a sua dor – a de hoje, e a da infância.

Afirmo isso porque, depois de uns bons 15 minutos de reflexões e memórias da parte dele, enquanto fecho a porta da casa da vizinha e ele entra no elevador, agradecendo pela conversa que o fez esquecer dos cristais agudos em trânsito, percebo que não se deu uma conversa, mas sim um monólogo: de fato, não cheguei a emitir uma única frase completa. Ele falou, eu ouvi.

Embora leiga nos meandros da mente, confirmo o óbvio: apesar de ser breve o alívio da dor, é na escuta que repousa o segredo da terapia pela palavra.

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