A avó ficou responsável pela neta de 7 anos, a mais velha. Ia cuidar dela do começo da tarde até o dia seguinte, quando os pais passariam para recolher de volta a menina. O casal ia a uma festa prevista para terminar bem tarde.
A avó preparava o jantar para elas duas, meio distraída, quando escutou o grito agudo da neta, que deixara no banheiro com o chuveiro ligado, já pronta para o banho.
Vóóóóóó!! – ouviu o berro da menina em longo fôlego, soltando os pulmões no impulso que causaria o súbito anúncio de uma catástrofe em vias de acontecer.
A avó largou tudo que estava fazendo e voou para o banheiro.
A neta estava no mesmo lugar onde ela a havia deixado, segurando a embalagem do shampoo como quem segura um rato morto pela cauda.
O coração batendo na boca, a avó escutou a menina reclamar, quase em soluços: Vó! Esse shampoo tem parabenos!
A menina havia sido alfabetizada cedo, e cedo também havia sido alertada para os Grandes Riscos da Vida. Aos quatro anos, entre gôndolas de guloseimas do supermercado, pedira à avó que comprasse uma certa marca de biscoito porque era sodável. E a avó achara o pedido tão bonitinho, que acabara comprando.
Mal sabia ela que estava criando um monstro.
Aliás, não diretamente ela, mas o filho e a nora, os pais da menina, um par de millenials da chamada Geração Y, dotados de extremo zelo e atenção a tudo que pudesse trazer o mínimo prejuízo à saúde da criança.
A avó tomou a embalagem de shampoo da mão da neta. De fato, estavam escritas duas palavras, talvez de advertência: “Contém parabenos”. O que seriam esses parabenos, pensou a avó, lembrando dos velhos tempos.
Durante toda a infância, e parte da adolescência, ela lavara os cabelos com sabão de coco, até a mãe escutar no rádio o jingle de lançamento de um novo produto, o shampoo. Lembrava de boa parte da musiquinha quase didática do jingle, que ainda costumava cantarolar de vez em quando: “Você lava as mãos com shampoo?/ Claro que não!/ Shampoo é pra lavar os cabelos/ Shampoo embeleza os cabelos/ Shampoooooo!!!!” Ninguém falava em parabenos.
A avó sobrevivera aos Grandes Riscos da Vida graças ao imenso desconhecimento familiar de fatos que hoje pareciam óbvios até para os recém-nascidos. Tivera seus dentes obturados com amálgama de mercúrio (não se falava em metais pesados, nem na elegante “restauração” dentária). Mais de uma vez apanhara o mercúrio que caía dos termômetros de vidro, sempre que quebravam, e se divertira com a repetitiva divisão e unificação daquelas pérolas prateadas dançando na palma da sua mão.
Durante as epidemias de piolho, que periodicamente assolavam as cabeleiras das crianças de escola, aguardara de cabeça baixa enquanto a mãe repartia seu cabelo em fileiras estreitas, e borrifava nos caminhos abertos o pozinho branco, saído em suspiros da lata redonda de Detefon (nome completo diclorodifeniltricloroetano, apelido DDT), antes de ter toda sua cabeça envolvida com o lenço que garantiria a hecatombe.
Em tempos de chuva, e na hora do almoço, vira com naturalidade a caminhada da mãe em volta da mesa a acionar uma bomba de flit, para afastar as moscas, e lembrava até como as gotinhas do produto se espalhavam em névoa no ar que a família respirava.
Sobrevivera a tudo isso, e não via razão para ceder agora.
Abriu o recipiente do shampoo e derramou o mel dourado sobre os cachinhos da neta, que a encarava com o espanto de quem presencia uma erupção vulcânica.
E a avó disse que ela ia lavar o cabelo, sim, com ou sem parabenos. Se você usasse esse shampoo 24 horas por dia, sete dias por semana, vá lá! Pode até ser que viesse a fazer mal, com esses tais “disruptores endócrinos”, duas palavras que você não devia nem estar resmungando aí. Mas usar uma vez na vida – problema nenhum!
Sabia que a neta ia contar tudo aos pais no dia seguinte. Já estava com duas ou três boas respostas na ponta da língua.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.