Quando o pão se tornou digno: Lembranças dos idos de 1978; Por Gera Teixeira

COMPARTILHE A NOTÍCIA

Nas últimas décadas do século passado, o ambiente de trabalho nas empresas não estava distante do desumano. As relações de trabalho ainda traziam o eco da escravidão. Mandava-se muito, ouvia-se pouco e punia-se com rigor. A Abolição, embora celebrada nos livros, ainda não havia se consumado nas práticas do cotidiano. O trabalhador era tratado como peça substituível, e a dignidade parecia luxo de idealistas.

Foi nesse cenário que decidi romper, à minha maneira, com o que me soava injusto. Nos canteiros de obras do pobre e esquecido Ceará, vi homens exaustos, de olhar apagado e corpo lento. Chamavam-nos de preguiçosos ou malandros, mas o que eu via era apenas fome, e a fome, essa, não tem culpa. Movido por empatia e intuição, resolvi oferecer-lhes um café da manhã simples: pão com manteiga, café e leite. Não ouso falar em milagre, mas o efeito foi imediato. O sol escaldante sorriu. A energia voltou, o ânimo reacendeu, e o trabalho ganhou novo ritmo.

Vieram, naturalmente, as críticas. Fui chamado de comunista, de sonhador ingênuo, de construtor fadado ao fracasso. Mas os fatos falaram por si: a produtividade cresceu, e com ela veio o respeito e o crescimento. Ainda assim, ao meio-dia, quando a fome também me visitava, passava pela fornalha improvisada de pedras e gravetos, de onde subia o aroma do arroz, do feijão e dos pedaços de charque, temperados pelo apetite e pela simplicidade. Ao lado, uma lata de farinha de caroço e um pedaço de rapadura completavam o banquete dos humildes operários. Aquela imagem me marcou profundamente. Pensei: se um café muda tanto, imagine o que pode fazer uma refeição digna.

A ideia, vista como heresia pelos colegas, parecia inviável. Meu bolso não suportava o gasto, mas o coração insistia. Com a ajuda generosa de comerciantes da velha Rua Governador Sampaio, alguns oferecendo descontos, outros doando mantimentos, consegui tornar o sonho possível. Assim nasceram as primeiras refeições de que se tinha notícia em canteiros de obras no Ceará. Foi uma festa. O sorriso voltou aos rostos cansados, o entusiasmo multiplicou-se, e o clima nos canteiros se transformou.

A notícia se espalhou, e logo chegou a Vigilância Sanitária. O poder público mais atrapalha do que ajuda, um dia desses ainda ouvi. Pranchetas em punho, apontaram irregularidades e aplicaram uma multa capaz de me fazer vender o velho Fusca e não ser suficiente para pagá-la. Os operários, indignados, reagiram à moda cearense: uma vaia sonora que ecoou pela terra seca e rachada. . Foi então que, como por encanto, apareceu um “especialista” que resolveu o impasse e tudo se dissipou como se nunca tivesse existido. Coisas de Brasil, que infelizmente ainda resistem no tempo.

Com o passar dos anos, aquela iniciativa modesta ganhou novos contornos. O que nasceu de um gesto humano transformou-se em princípio de dignidade, e quem sabe não ajudou a inspirar políticas que reconheceram o direito à alimentação no trabalho. Hoje, quando a lembrança me traz o cheiro do feijão e do charque nas panelas de barro, sinto que foi ali, naquele improviso solidário, que o pão se tornou digno e o trabalho, um pouco mais humano.

A história da construção civil do Ceará é feita dessas e de tantas outras passagens, que só podem ser contadas por quem as viveu.

Nota: O benefício da alimentação, no Ceará, só veio a ser obrigatória no início dos anos 90 por iniciativa patronal – SINDUSCON-CE. pronunciada por mim, na presidência do ZéMartins Soriano Aderaldo.

Gera Teixeira é empresário ítalo-brasileiro com atuação nos setores de construção civil e engenharia de telecomunicações. Graduado em Marketing, com formação executiva pela Fundação Dom Cabral e curso em Inovação pela Wharton School (EUA). Atualmente cursa Pós-graduação em Psicanálise e Contemporaneidade pela PUC. Atuou como jornalista colaborador em veículos de grande circulação no Ceará. Integrou o Comites Italiano Nordeste, órgão representativo vinculado ao Ministério das Relações Exteriores da Itália. Tem participação ativa no associativismo empresarial e sindical.

 

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

AtlasIntel revela consenso nacional contra o dono do Banco Master e expõe crise de confiança no sistema financeiro

Obtuário: Frank Gehry e o fim de uma era em que a arquitetura acreditava poder mudar cidades

Drones, motos e cidades no limite: por que Fortaleza terá que se adaptar

A análise da reviravolta: PL suspende apoio a Ciro Gomes após ofensiva de Michelle

A aposta limpa do Governo com Spark na frota pública: baixo carbono, eficiência e maior economia

Entenda o incômodo de Michelle com Ciro Gomes

Com Ciro como pivô, racha no bolsonarismo explode no Ceará e expõe disputa por comando no PL

Aeroporto de Jericoacoara. Foto: Divulgação

Entenda o que o leilão dos aeroportos regionais realmente revela

Aécio reposiciona PSDB, abre janela para apoiar Tarcísio e facilita a vida de Ciro no Ceará

Aécio banca PSDB no centro com veto a Lula e ao bolsonarismo; E como fica Ciro?

Com pesquisa e patente cearenses, curativo de pele de tilápia chega ao mercado; E o local da indústria?

Domingos Filho entendeu que o gênero é ativo estratégico e Patrícia Aguiar vira peça do PSD para 2026

MAIS LIDAS DO DIA

Carla Zambelli renuncia ao mandato após ordem do STF

76% dos brasileiros pretendem gastar até R$ 1 mil no fim de ano, aponta pesquisa

Turismo do Ceará cresce 5,7% em outubro e lidera o Nordeste pelo quinto mês seguido

Mercado reduz estimativa da inflação para 4,36% em 2025

Pagamento do 13º salário deve injetar R$ 369 bilhões na economia até sexta

Lições de democracia; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Medo e autocensura esvaziam debate político no WhatsApp, diz pesquisa

Direita dividida: Zema consolida palanque em Minas e amplia fissuras para 2026

Dia da Mulher Advogada: onde a paridade floresce. Por Érica Martins